As manhãs em Stanston sempre começavam com o som distante das marteladas nas forjas, o tilintar do metal reverberava pelas ruas de terra batida. Esta era a forma que a pequena vila saudava a nova manhã.
O garoto magro e sorridente costumava acordar cedo, antes que o vilarejo ganhasse vida. Ele gostava da quietude da manhã, da forma como o sol nascia por entre a floresta.
Esta manhã, sobretudo, era mais especial para ele. Respirando fundo o ar fresco e úmido, ele pegou seu balde cheio de água do poço e saiu correndo em direção à sua casa.
No caminho, em sua pressa, quase esbarrou em alguns moradores. Sem parar seu ritmo, ele continuou correndo e sinalizava com uma de suas mãos, como se pedisse desculpas ao longe.
Os dois moradores simples pararam para se equilibrar após a pequena colisão e gritaram para o rapaz:
— Bom dia! Parabéns, Cauã! — Levantando as mãos em um gesto de cumprimento, acenaram para o garoto que já estava distante. Pareciam felizes, acostumados com a energia e a pressa do rapaz.
Dez anos se passaram desde que Simão, o mercador o adotou e o resgatou das garras da Casa Raven.
O nome Cantu havia sido enterrado junto com seu passado. Agora, ele era conhecido como Cauã Broenni, o bastardo que apareceu de repente na vila e foi legitimado pelo mercador e aventureiro da cidade.
Sua chegada havia causado grande agitação no pequeno vilarejo; os habitantes locais curiosos e desconfiados, o observaram com atenção e cuidado durante bons anos. No entanto, com o passar do tempo, Cauã foi aceito pela comunidade e virou uma criança querida entre os habitantes.
A modesta vila, com pouco mais que uma praça central e algumas casas de madeira, era um ponto de referência para ferreiros. Seus moradores, embora simples, sustentavam suas vidas com a extração e venda de metais. A vila era cercada pela vasta floresta que se estendia ao sul.
Apesar da grande distância, o local ainda pertencia ao ducado da família Raven, porém, era raro ver alguém relacionado à nobreza pela região. O motivo disto era a localização difícil de Stanton, tão complicada que até utilizar o local como passagem não era uma boa opção.
Para garantir a segurança e renda da família, Simão efetuava viagens constantes para as cidades próximas; seu objetivo principal era vender as especiarias da vila, mas também, coletar informações de movimentações na redondeza.
Por uma parte, ele criou rapidamente um profundo sentimento de amor e paternidade pela criança e se preocupava com seu crescimento. Mesmo querendo o manter seguro, ele era dividido entre o desejo de protegê-lo e o de permitir que o garoto tivesse a oportunidade de viver uma vida normal, além daquela remota vila.
Esse sentimento se intensificou quando viu o garoto se apegar a um bestiário empoeirado na estante do quarto. Com apenas 6 anos, ele carregava o livro para todos os lados e, sempre que tinha um tempinho, o folheava.
Inicialmente, Simão pensou que os pequenos desenhos entre as páginas fossem o que mais atraía o garoto, mas, após alguns meses lendo para ele o conteúdo, percebeu que o menino já havia aprendido a identificar os caracteres e seu amor pela literatura havia se aprofundado.
Sendo assim, sempre que podia, trazia alguns livros para Cauã, para que ele pudesse conhecer mais sobre o mundo ao seu redor. Esses presentes acalmavam o coração de Simão, que temia estar privando o garoto de uma vida mais completa.
Desta vez não seria diferente, em direção a sua casa, estava ansioso e percorria seu caminho com certa agilidade, ele desejava chegar rapidamente em sua propriedade para poder passar o dia com seu filho, já que era seu aniversário de dez anos.
Ele entrou na cidade com uma voraz velocidade e ao chegar ao final da rua poeirenta, a pequena carroça rangeu ao parar. Simão saltou da sela, amarrou firmemente os cavalos a um poste e caminhou em direção à porta de madeira maciça de sua casa.
Cauã que estava jogando água sobre o forno, o calor ondulava no ar à sua volta, quando um som seco de batidas na porta o fez parar imediatamente. O vapor subia em espirais no ambiente abafado da cozinha. O cheiro de comida quente e carvão aceso enchia o ar, tornando o ambiente caloroso e receptivo. Ele pegou a velha toalha de linho, e correu em direção à porta.
Quando a pesada porta de madeira se abriu, revelando a figura de Simão, um sorriso involuntário surgiu em seus lábios. Seu manto estava coberto de poeira, e os sinais de uma longa jornada eram evidentes em seu rosto marcado pelo tempo. Simão acabara de retornar de Raven, onde havia negociado especiarias e mercadorias para a vila. Seus olhos, sempre astutos, agora brilhavam com uma felicidade genuína. Com um salto, abriu os braços e exclamou:
— Feliz aniversário, meu rapaz!
Cauã correu em sua direção e o abraçou com força. A cena era contagiante, um retrato autêntico de afeto. A alegria irradiava deles, aquecendo o ambiente com a intensidade de um abraço.
— Pai! Como foi a viagem? Encontrou algo interessante em Raven? Lutou contra algum monstro terrível? Sente-se aqui, acabei de esquentar a água. Podemos comer alguma coisa e descansar um pouco.
Enquanto enxugava suas mãos e as apontava para a mesa de madeira no centro da sala. Seus movimentos eram naturais, mas seus olhos não deixavam escapar que estava ansioso para pedir algo para o seu pai.
Simão, olhando a situação, sentiu que algo o incomodava, a mesma sensação que sempre se manifestava quando o garoto estava tramando algo em sua mente.
Com o olhar franzido, ele se sentou na cadeira de madeira, mas seus olhos astutos logo captaram a inquietação nos gestos de Cauã. Ele sabia que o menino estava remoendo alguma coisa. Com um suspiro, Simão esticou a mão e puxou suavemente o capuz de linho que o garoto usava para esconder os fios prateados.
— O que foi, garoto? — disse ele, esboçando um leve sorriso de canto de boca.
Cauã respirou fundo, como se estivesse reunindo coragem. Seus olhos brilharam com uma determinação que Simão nunca tinha visto antes.
— Quero que você me apresente à guilda de aventureiros, pai. — disse de uma vez só, a voz firme, mas carregada de expectativa. — Eu... estou pronto para viver minhas próprias aventuras. Sei que existe um mundo além das fronteiras desta vila, e quero vê-lo com meus próprios olhos. Aprender a lutar, viajar, conhecer as criaturas que estão lá fora... é isso o que eu quero.
Simão recostou-se na cadeira, seu sorriso desaparecendo aos poucos enquanto as palavras de Cauã ecoavam na sala. Ele o observou em silêncio por alguns instantes, avaliando o garoto à sua frente.
— A guilda de aventureiros, hein? — murmurou, um leve suspiro escapando. — Você acha que está pronto para isso? Sabe que o caminho que está pedindo não tem volta. Eles não vivem aventuras como nos contos, Cauã... Eles vivem de sangue, suor e contratos sujos. Tem certeza de que é isso que quer para você?
Enquanto aguardava a resposta do garoto, a porta da cozinha se abriu e Paulo Broenni, com um sorriso amistoso no rosto, entrou carregando um prato fumegante. Ele colocou a refeição na frente de Simão com um gesto cuidadoso, o cheiro de carne assada e temperos encheu o ambiente.
— Enquanto você esteve fora, ele não parou de falar sobre isso — disse Paulo, rindo e dando uma leve tapinha nas costas de Cauã. — O garoto não fala em outra coisa. Parece que decidiu de vez.
Simão levantou uma sobrancelha, agora ainda mais curioso, e olhou de soslaio para Cauã, que suspirou profundamente.
Soltando um suspiro pesado, enquanto suas mãos esfregavam o rosto cansado. Ele trocou um olhar rápido com Paulo, que deu de ombros, como quem já esperava por esse momento.
Cauã já não era mais uma criança, mas isso não tornava seu pedido menos difícil.
No entanto, o pensamento de Simão começava o afastar da situação. Talvez, de alguma forma, se distanciar da segurança de Stanston e trilhar o caminho de aventureiro não fosse tão ruim. Era arriscado, claro, mas aquele tipo de vida poderia levar o garoto para longe... tentar fazê-lo ficar preso naquela cidade apenas o faria odiar suas origens, sem nem mesmo entendê-las.
Ainda assim, ele não podia ignorar o perigo. A vida de um mercenário e aventureiro era cheia de incertezas, e sabendo que Cauã, ainda não estava preparado para o que o aguardava lá fora. No entanto, o mercador também reconhecia a força de vontade no olhar do garoto. O sangue de Raven corria em suas veias, e essa determinação era parte dele.
— Talvez... talvez isso não seja de todo mal — balbuciou para sí, embora o medo ainda pesasse em seu peito. Quanto mais longe ele for e forte ficar, mais garantido será seu futuro.
Simão olhou para o garoto à sua frente, que esperava ansioso pela resposta. Havia um dilema: deixar que ele enfrentasse os perigos do mundo ou tentar segurá-lo em uma vida de relativa segurança, mas sempre à sombra de seu passado. Essa escolha poderia custar caro, mas talvez fosse a única chance de se libertar, de uma vez por todas, da sombra dos Raven.
— Está bem! — disse ele, finalmente, a relutância em sua voz se dissipando. — Você me acompanhará na próxima viagem. Preciso te apresentar a um amigo. Ele poderá nos ajudar com a guilda, e na viagem, te ensinarei como lutar e sobreviver na estrada.
A alegria irrompeu no rosto de Cauã como um raio de sol após uma tempestade. Seus olhos brilhavam intensamente, e um sorriso largo se espalhou em seus lábios.
— Obrigado, pai! — exclamou, mal conseguindo conter a empolgação.
Paulo, que estava à mesa observando a cena, sorriu com um aceno de aprovação. Ele sabia que essa era uma oportunidade única para o garoto, e sua expressão alegre refletia o alívio que todos sentiam.
Cauã não conseguia esconder a animação que transbordava de seu ser. A sensação de liberdade e novas possibilidades era eletrizante.
Ele finalmente poderia experimentar e ver tudo o que apenas conhecia através de livros.
Simão, percebendo a hora avançada, dirigiu-se ao garoto, sua voz carregada de paternidade.
— Agora, vá se preparar para deitar-se. É um grande dia amanhã, e você precisa descansar.
O garoto assentiu com a cabeça de forma quase que automática, mas a inquietação pulava dentro dele. A ideia de aventuras e o desconhecido o mantinham em estado de alerta, e ele sabia que a noite seria longa. Mesmo enquanto se movia para o quarto, o entusiasmo borbulhava em seu peito, tornando difícil a tarefa de se acalmar para conseguir dormir com tranquilidade.
Enquanto isso, Simão e Paulo continuaram conversando na cozinha, trocando ideias sobre a viagem que estava por vir e sobre o que poderia aguardar o jovem nas estradas.
No seu quarto, Cauã acendeu uma pequena vela, a chama tremulando suavemente enquanto a luz suave dançava nas paredes de madeira. Ele se sentou na beira da cama, enquanto olhava para o seu livro favorito na estante, perdido em pensamentos sobre a aventura que o aguardava. O coração pulsava forte em seu peito, uma mistura de ansiedade e expectativa pelo que estava por vir.
Enquanto tentava se acalmar e deixar o dia para trás, um pequeno barulho na janela chamou sua atenção. Ele se virou, os sentidos aguçados, e viu uma silhueta escura recortada contra a luz da lua. Um corvo pousara delicadamente na janela, seu olhar brilhante e penetrante fixo em Cauã.
O pássaro parecia quase sobrenatural, suas penas negras reluzindo à luz da vela. Cauã sentiu um frio na espinha ao encarar aquele olhar que parecia carregado de mistério e sabedoria. O corvo bateu com seu bico contra a janela de madeira, como se quisesse chamar a atenção do garoto, e por um breve momento, Cauã se perguntou se o animal era um sinal, um mensageiro para talvez sua primeira aventura.
Com um gesto hesitante, ele se aproximou da janela, o coração acelerado. O corvo continuou a observá-lo, e Cauã pôde sentir que havia algo mais profundo por trás daqueles olhos. Com um misto de curiosidade e apreensão, ele se perguntou se a presença do pássaro estava ligada à sua vontade de viver uma aventura tal como nos livros.
O corvo, com um leve movimento de sua cabeça, pareceu convidá-lo a se aproximar, e Cauã sentiu um impulso quase irresistível. O animal bateu seu bico contra a madeira novamente, dando um passo à frente na beira da janela, como se estivesse chamando-o para uma jornada. A inquietação no peito do garoto cresceu, e a curiosidade tomou conta de sua mente.
Ele hesitou por um momento, mas a determinação tomou conta dele. "E se for uma oportunidade única?" pensou. Com a vela na mão, Cauã se aproximou da janela, o brilho da chama lançando sombras que dançavam ao seu redor.
Sem pensar duas vezes, ele posicionou a vela sobre a mesa ao lado e, com um salto ágil, pulou pela janela. A brisa noturna acariciou seu rosto enquanto ele aterrissava suavemente no chão coberto de folhas secas. O corvo esperou, suas asas batendo levemente enquanto olhava para trás, como se estivesse certificando-se de que o garoto o seguiria.
Com um último olhar para a segurança de seu quarto, Cauã seguiu o corvo, que voou baixo, cortando a escuridão da floresta à sua frente. A cada passo, o coração do garoto pulsava com a adrenalina da aventura, e a sensação de estar fugindo do comum o envolvia como um manto.
A lua iluminava o caminho, e o corvo, com suas penas negras brilhando sob a luz prateada, parecia ser o guia perfeito para essa jornada desconhecida.
Cauã seguiu o corvo, que flutuava na escuridão da floresta, como uma sombra viva. A cada passo que dava, a luz da lua se filtrava pelas copas densas das árvores, criando um jogo de sombras e luzes que dançava ao seu redor. O ar estava carregado com o perfume terroso da umidade, e o sussurro das folhas parecia formar murmúrios, como se a própria floresta estivesse sussurrando segredos.
A vegetação ao redor era densa e vibrante, com raízes serpenteantes que pareciam querer prendê-lo enquanto avançava.
Finalmente, após o que pareceu uma eternidade, eles chegaram a uma clareira, onde uma grande pedra se erguia, imponente ao meio da floresta, coberta de musgo e líquens.
O corvo pousou na frente da rocha, olhando para Cauã com um brilho misterioso em seus olhos. Era como se o pássaro guardasse um segredo profundo, algo que clamava por ser descoberto.
Então, um som perturbador cortou a quietude da noite: o grito de um bebê recém-nascido ecoou, ressoando na escuridão como um chamado angustiado. Cauã olhou ao redor curioso com o som que acaba de ouvir, procurando onde a criança poderia estar, quando percebeu viu que a névoa, que não estava ali quando chegou, agora se ergueu em volta de seus pés, envolvendo-o como um véu etéreo e frio.
Levantando os olhos novamente para a ave, que o encarava com uma intensidade quase hipnótica, o jovem sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Em um sussurro que atravessou a bruma, o corvo falou, sua voz grave reverberando entre as árvores: “ACORDE!”.
Cauã sentiu um jorro de energia, e, de repente, abriu os olhos, descobrindo-se em sua cama, a luz da manhã filtrando-se pelas frestas da janela. O sonho ainda ecoava em sua mente, mas a sensação de urgência e conexão com a floresta permanecia, deixando uma pergunta inquietante pairando no ar: havia sido apenas um sonho?
Ainda atordoado pelo sonho vívido, virou a cabeça em direção à janela. Um brilho escuro chamou sua atenção. Quando se aproximou, notou algo repousando na janela: uma pena preta, brilhando como se tivesse sido polida.
Ele pegou a pena entre os dedos, a textura suave contrastando com a aspereza da madeira da mesa. A presença do objeto despertou um misto de confusão e fascínio. “Isso não pode ser apenas uma coincidência,” pensou, lembrando-se da visão do corvo e da sensação profunda que o envolvia.
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